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sábado, 5 de novembro de 2011

Crime e Punição - Clara Wichmann


Você poderia argumentar que muitas coisas eram diferentes em 1919, mas a pacifista holandesa Clara Wichmann com certeza tinha algumas idéias progressistas sobre crime e punição...  


Por que a punição é aplicada? A maioria das pessoas nem se fazem essa pergunta. Para elas é óbvio que prisões existam, celas nas quais aqueles que transgrediram as leis penais desta sociedade são trancafiados por semanas ou meses ou até mesmo anos. Elas andam perto dessas prisões e não se perturbam com sua existência.

Outras que examinaram esta questão acham fácil responder: um senso de justiça, elas dizem, demanda retribuição pela injustiça; cometida. Ou elas defendem os interesses da sociedade e concluem que a sociedade deve se proteger contra as infrações à ordem impedindo o crime, melhorando, se possível, o criminoso, e, se isto, na sua opinião, não for possível, deve-se torná-lo inofensivo.



Dor e exclusão

Este raciocínio presume que a pessoa que infringe as leis penais existentes é uma pessoa ruim e que a sociedade a qual a maioria condena tais pessoas é uma sociedade verdadeiramente humanitária. Ele também pressupõe que infligir dor e exclusão são reações apropriadas contra “criminosos”. Do fundo do coração, achamos tudo isso errado e trágico: uma ilusão doentia que perpetua relações desumanas.

É obviamente falso que nossa lei atual represente uma verdade eterna. Ela protege a classe dos proprietários, ela mantém as relações de propriedades vigentes como se valessem ser mantidas a qualquer preço. É agradável e fácil pensar que a maioria das pessoas condenadas são moralmente deficientes e a maioria dos não-condenados são pessoas de uma ordem superior. Na verdade, porém, não é assim tão simples!

Em todos os países, a vasta maioria das pessoas condenadas, mesmo em relação à sua proporção na população, pertence às classes sem propriedades! Se o crime unicamente procedesse da “maldade dos corações”, seria esse ainda o caso?



Correção” e intimidação

Vamos pensar naqueles criminosos que realmente precisariam melhorar. O que a punição faz para eles? A punição os rebaixa, os humilha, rouba deles todo e qualquer poder de recuperação. Desde o início do processo criminal, eles são colocados em oposição à sociedade, considerados inimigos.

Como resultado disso todo o desenvolvimento interior, que se segue a toda ação e também a todo feito errôneo, é rompido. O processo interior de cura é perturbado. Na realidade, atualmente, o criminoso ainda não é tratado como ser humano, mas processado como uma coisa. Tudo que merece ser chamado humano lhe é negado na prisão. Na prisão ele (ou ela) nem tem a oportunidade de transformar suas boas resoluções em ação. Isto é o motivo pelo qual a correção do criminoso por intermédio da prisão é impossível.

Pode a prisão então intimidar? Pouco. Elevação ou queda da criminalidade são, em geral, determinadas por causas completamente diferentes do efeito da punição. Isto é continuamente demonstrado pelo grande número de ofensores reincidentes. Mas, acima de tudo, todo o conceito de intimidação é imoral, pois considera os seres humanos somente como um meio.

Torná-los inofensivos então? Pouco. O próprio termo é indigno! E o resultado dessa tentativa é que muitos deixam a prisão “mais nocivos” do que quando entraram. Desperte a bondade nas pessoas, faça o que pode para fortalecê-lo, para deixar toda a capacidade positiva e construtiva dentro deles crescer; mas não tente torná-los “inofensivos”.

Em alguns criminosos “incorrigíveis”, parece que nada de bom pode ser despertado. Em toda sua pessoa parecem subumanos, vítimas de degeneração... Deveríamos considerá-los e tratá-los como pessoas doentes e não pensar em “puni-los” mais do que hoje iríamos punir pessoas loucas.



O conceito de punição

Mais poderoso do que todos estes “propósitos” que se espera atingir com punição é o velho princípio de represália que vive nas pessoas em que a vingança se escondeu. Ele requer que a pessoa que causou sofrimento também sofra dor, ele quer “reembolso” de tudo e vingança.

O direito penal é apenas uma manifestação de algo que encontramos em todos os domínios da vida pessoal e social. Com profunda convicção nós nos opomos a todo o conceito de punição. Não é assim que a relação de seres humanos para seres humanos deveria ser. Não é a maneira como as pessoas deveriam enfrentar uns aos outros.

Nós propomos outro princípio de vida: não devemos julgar. Não devemos retaliar. Não devemos punir. Não devemos recompensar. Mas devemos tentar, com todo o poder dentro de nós, criar uma sociedade verdadeiramente humanitária, na qual as condições para crescimento e desenvolvimento para todas as pessoas estejam presentes. Devemos tentar — em nós mesmos e nos outros — superar o mal pelo bem. O crime só pode ser combatido indiretamente — não destruindo forças, mas despertando forças, transformando aquilo que começou de forma destrutiva em algo construtivo.

Numa verdadeira Comunidade haveria a disposição para ajudar uns aos outros a superar nossas dificuldades. Para tanto estaríamos preparados para sacrificar muito “interesse” imediato. Não teríamos, como agora, sempre em mente os “objetos da lei que estão ameaçados”, mas os seres humanos, que sempre enfrentam uma luta consigo mesmo. Quando um dos nossos sucumbiu nessa luta, saberíamos que foi nosso fracasso comum.

Apesar de nos alegrarmos com cada melhoria real que é feita no direito penal e no sistema penal — nossa meta é mais ampla. Pedimos uma transformação radical, não mudanças parciais. Vemos um outro princípio aparecer no horizonte — uma nova era, uma humanidade fraternal, que irá romper o princípio de punição.
 

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Fonte: Texto traduzido do original holandês escrito em junho de 1919 e publicado pela revista Peace News
em fevereiro de 2002. Dra. Clara Meijer Wichmann foi chefe do departamento de estatística criminal da Agência Central de Estatística do governo holandês.


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